terça-feira, 25 de outubro de 2016

Sozinha - Desafio Literário

Desafio Literário 2050

Dedicatória: Dedico essa história a aquele que nunca me deixa sozinha, não somente nos Halloweens. E.Y.D., eu te amo.


Sozinha


Naquela véspera do Dia de Todos os Santos, eu corria.
Era 31 de Outubro, data das bruxas, dos doces e das travessuras. O Halloween me causava sentimentos adversos: Sua celebração agradava-me, crianças fantasiadas pelas ruas, a decoração das abóboras laranjas iluminadas internamente e esculpidas com rostos divertidos, a movimentação que coloria e alegrava as ruas da cidade. Mas em contraposto, eu odiava a ideia de ficar sozinha numa data como aquela. A noite onde os espíritos eram permitidos vagar pela Terra livremente, a noite que os símbolos de azar ganhavam força, noite das caveiras e demônios.
Me entendam, o problema real não é nada disso que eu citei. Mas é estar sozinha entre tantas superstições e maus agouros. E eu estou sempre sozinha.

Mas como eu disse anteriormente: Nesse Halloween, eu corria. Corria entre as árvores secas e encurvadas da floresta densa que rodeava a pequena cidadezinha interiorana que eu chamava de lar. Era uma noite sem estrelas, mesmo que a lua estivesse cheia em todo seu resplendor. Mas sua iluminação fosca não era suficiente para iluminar a escuridão das sombras das grandes árvores, e eu corria praticamente ás cegas. Podia sentir alguns fios de cabelo molhados pelo suor grudados contra minha face, meu ritmo já desacelerava aos poucos pelo cansaço que tomava conta do meu corpo. Mas eu precisava continuar, não podia parar agora.


Porque estou correndo? É simples.
Eu estava sendo perseguida. Acho que é um instinto natural: Fugir quando se sente ameaçado. E céus, não existe nada que me assombre mais do que aquilo que incessantemente perseguia-me: Lembranças. Na maioria das vezes, elas aparecem apenas na minha mente e consigo livrar-me delas. Mas abaixo desse luar gélido e entre os galhos dessa vegetação morta e que aparenta sem fim, elas realmente me perseguiam.  Não no sentido metafórico ou figurado.
Eu podia ouvir claramente os seus sussurros ecoando por toda a floresta, como se ele estivesse em todos os lugares. E ele estava. Sempre esteve.
Minhas pernas cederam quando o desgaste assumiu o controle do meu corpo, e não pude fazer nada após tropeçar em um tronco de árvore caído. Deitada no chão frio coberto por folhas quebradiças e secas, senti um ardor na altura do joelho: Sangue saía de um pequeno ferimento, e as lufadas de vento o fizeram arder ainda mais. Tentei ignorar aquela dor, mantendo-me completamente calada. Eu podia ouvir passos lentos ao longe, ficando cada vez mais próximos pelo som das folhas e galhos aos seus pés partindo-se. Antecipadamente, as lágrimas rolaram por meu rosto. Não tinha como escapar dele, eu nunca conseguia. Mas eu estava tão farta, todos os anos ele vinha. Eu odiava a solidão, mas eu odiava aquilo mais ainda.

– Alasca, você tem que ser menos desastrada.

Fechei meus olhos. Ele estava ali. Novamente, eu havia perdido. Teria que encará-lo.  Senti o toque de sua mão no meu ferimento, flexionei a perna para junto de meu corpo, mesmo que a dor aumentasse assim. Foi uma reação involuntária pela gelidez da sua mão, mas eu o teria feito de qualquer jeito. Por alguns minutos, o silencio total me deu esperanças dele ter ido embora. Abri lentamente os olhos, minha visão embaçada pelas malditas lágrimas que brotavam. Mas lá estava ele, ajoelhado ao meu lado, encarando-me com seus olhos negros e vazios. A pele tão pálida quanto à lua acima de nós, e tenho certeza que tão fria quanto o chão no qual me deito. Ele não tinha o menor traço de expressão em seu rosto, mesmo que ainda aparentasse a jovialidade. Eternamente jovem. Ele encarava-me profundamente, sentia seus olhos atravessarem a minha alma, o meu ser. Suspirei pesadamente, sustentando seu olhar. Após alguns minutos que pareciam uma eternidade, me ouvi questionar baixinho:

– Por quê?

Sua testa franziu-se, e sua pele formou pequenas rachaduras na altura da testa. Minha expressão deveria denunciar o horror de vê-lo daquele jeito, pois suavizando sua rouca voz, tentou me tranqüilizar:

– Não se preocupe com isso, é apenas um machucado. Mas esse seu tombo te deixou meio tonta, não está falando nada com sentido. Agora levante, é a sua vez, te peguei.


Nesse momento, ele encostou seus dedos frios e ásperos em meu ombro, delicadamente. Mas não saiu em disparada correndo. Assim como eu não me levantei.  Ele continuou me olhando com curiosidade, e longos minutos depois, num suspiro pesado voltou a falar, forçando a voz para que ela soasse mais grave:

– Você sempre faz isso. Eu venho brincar com você, tento vê-la sempre que consigo, e você passa o tempo todo fugindo de mim ou tentando me ignorar. Você é uma ingrata, Alasca. Quando eu parar de vir visitá-la, não reclame.

– Mortos não brincam de pega-pega, Henry. Mortos NÃO andam entre os vivos, Henry. E MORTOS NÃO VISITAM VIVOS, ACIMA DE TUDO, HENRY! – Levantei meu tronco subitamente, ficando na altura de seu rosto. Gritei usando todo o ar que tinha em meus pulmões, por longos segundos, e pude ouvir minha própria voz ecoar pela floresta. Algumas aves noturnas levantaram vôo. Levei minhas mãos ao rosto, enxugando qualquer lagrima que ousasse sair dos meus olhos. E novamente, o encarei. A expressão descrente em seu rosto era a mesma que tantas vezes já vi no passado, quando ele não colocava fé em minhas palavras.

– Lá vem você com essa mesma ladainha de novo. Alasca, eu detesto esse seu jogo de morto e viva! Já chega, eu não tenho muito tempo. Só fique comigo um pouco, por favor. Eu só quero brincar com você, a gente pode escalar árvores! – ele dizia com a mesma animação do pequeno Henry com o qual eu cresci. A minha primeira e única paixão. Quis acreditar ter visto um brilho em seus olhos foscos e cansados, mas era apenas o reflexo lunar. Henry levantou-se, continuando – Ta, eu sei que você prefere colher flores, mas isso é muito chato Al. Ou... Já sei!! Vamos naquela cachoeira, ela não está muito longe daqui. Você pode nadar de roupa, não tem problema...

Parei de ouvi-lo, assim que ele citou a nascente de água onde nadávamos desde novos. Foi como se meus ouvidos fossem pressionados, sua voz ficou distante, enquanto eu me perdia em memórias. Ah não. Novamente elas, as lembranças.

x

Era um dia morno, muito agradável até para aquela época do ano. Dia 30 de Outubro, véspera do Halloween, e Henry caminhava ao meu lado tagarelando sobre a fantasia que escolhera: Balde de pipoca. Eu gargalhava de suas tentativas de me convencer a usar uma fantasia improvisada de latinha de refrigerante, eu nunca usaria aquilo. Ou talvez, acabaria usando, se fosse do agrado dele. Eu e Henry crescemos lado a lado, e aos meus 12 anos, ele já era a minha paixão jovial. O motivo? Não faço idéia também. Ele não era o mais inteligente, talvez nem o mais bonito. Com certeza não era o mais educado ou charmoso. O que diferenciava Henry do restante, era o seu humor e alto-astral que mantêm em toda e qualquer situação, chegando a ser irritante às vezes.
Mas lá estava eu, agora tentando alcançá-lo numa corrida até a cachoeira. Tropecei algumas vezes em galhos soltos, e ouvia seus risos mais a frente. Eu tropeçaria eternamente para ouvir mais daquelas gargalhadas. Chegamos à nascente, um lago de água cristalina formava-se dela, sendo visíveis as pedras escorregadias em seu fundo. Cuidadosamente, entramos na gélida água, sem se importar com as roupas que ficariam molhadas. Passamos o dia inteiro nos refrescando na cachoeira, fazendo guerra de água, afogando um ao outro, jogando conversa fora. O tempo passava depressa demais quando eu estava com Henry, mas notei quando começou a escurecer. “Henrs, vamos embora, já está tarde.” Disse, olhando o reflexo nas águas da lua surgindo no céu. Ele pouco me deu atenção, boiava de barriga para cima, o rosto tão sereno que poderia estar dormindo. Eu fiquei mais tempo admirando-o do que gostaria de admitir. Henry espiou com um dos olhos, e sorriu de lado ao me pegar o olhando. Revirei os olhos, mas senti minhas bochechas corarem, então precisei atacá-lo com água para fazer meu ego se sentir melhor. Mal notei quando nem sequer a lua era brilhante o suficiente para nos clarear, o breu formado pelas árvores era quase absoluto. O frio veio junto com a noite, e meus dentes rangiam involuntariamente. Eu já abraçava o meu próprio corpo, as roupas molhadas e pesadas não me aqueciam em nada. “É, vamos embora agora.” Essa foi a voz de Henry, quando notou  meu estado. Não que ele estivesse muito diferente, mas Henry não parecia se importar. Ou só não queria demonstrar fraqueza. Assenti, e tomei um cuidado extra ao sair da pequena lagoa. Meu pé se prendeu entre duas rochas, e por um momento me desesperei. Henry levantou de supetão da água, e no mesmo momento consegui livrar-me das pedras.
Mas Henry não.
No primeiro passo apressado em minha direção, ele escorregou em uma das rochas submersas, e caiu de forma atrapalhada. Teria sido engraçado, e motivo de muitas provocações sobre ele ser desengonçado, se o baque de algo batendo não tivesse sido estrondoso suficiente para ecoar por toda a vegetação a nossa volta. A água antes cristalina tornou-se escura, uma coloração avermelhada espalhando-se pela mesma, concentrada onde Henry caíra. Um cheiro forte tomou o ar em poucos segundos.
Cheiro de sangue.
Fui tão afobada quanto ele anteriormente em sua direção, mas por desgraça do destino, não cai assim como ele. Fiquei em pé, até o momento que avistei seu corpo boiando naquelas águas, mas seu rosto virado para baixo. E da parte de trás da sua cabeça, de onde saía todo aquele sangue, um ferimento profundo com o mesmo formato de uma das saliências afiadas daquela rocha. Acredite, não foi o mais assustador. Próximo ao corte e entre seus cabelos loiros, uma profundidade assustadoramente anormal marcava sua cabeça, e sua pele tão pressionada contra o crânio que era capaz de enxergar o desenho dos seus ossos.
Virei seu rosto para cima, seus olhos estavam abertos e cheios de água, e sua boca entreaberta. Ele estava prestes a me dizer algo. Provavelmente uma reclamação sobre como eu sou desastrada, ou uma piada boba da situação.
Eu nunca saberia.
Eu gritava por seu nome, pedia para que ele falasse comigo. Prometi que vestiria a tal fantasia de refrigerante, e qual mais ele quisesse. Deixaria ele comer meu lanche todos os dias. Eu até o chamaria dali em diante de que ele era O Invencível Senhor Melhorzão Henry Diviníssimo – ele sempre pedia para ser identificado daquele jeito. Eu sempre ria de sua presunção.
Mas agora, sentia o gosto salgado de minhas próprias lágrimas. Seus olhos negros e ainda abertos me encaravam, e aquilo me impedia de ir embora. Eu tinha que chamar ajuda, mas não poderia deixá-lo sozinho! Ele nunca havia me abandonado. Não existe um momento feliz em que Henry não esteja ao meu lado.
Puxei seu corpo para fora daquela maldita lagoa, tentando não machucá-lo. Sentada na grama, sentindo frio e medo, lhe fiz companhia. Eu tenho certeza que ele faria o mesmo.
Adormeci ao seu lado, e no dia seguinte, na manhã de Halloween, ele simplesmente não estava mais lá. Meu coração se encheu de esperanças, ao compasso que também se encheu de decepções. Henry não estar mais ao meu lado, podia significar que o pior não havia acontecido, afinal. Mas também queria dizer que ele havia me abandonado ali, depois de todo o desespero pelo qual passei. Eu sentia uma dor muito forte de cabeça, e ao tentar levantar, cai novamente. Minha pele tinha uma coloração arroxeada, e minhas mãos tremiam. Depois disso, só me lembro da minha visão perdendo foco e logo em seguida a escuridão total novamente.
Acordei novamente, mas nos braços da minha mãe. A luz ofuscava meus olhos, um dia inteiro havia se passado e outro nascido. Achei que mamãe brigaria comigo, mas ela chorava aparentemente feliz de me ver, pelo modo que beijava meu rosto. Várias outras pessoas uniformizadas e alguns conhecidos me cercavam, entre eles a mãe de Henry. Nunca vou conseguir descrever a expressão em seu rosto. Um misto de tristeza, mas com muita culpa também. E só quando vi fecharem um saco negro em volta da cabeleira loira que eu bem conhecia, entendi o que significava sua culpa: Pensar porque o filho dela, que só deixava mais alegre a vida de todos a sua volta, e não eu, uma menina normal que passava despercebida por tudo e todos.
E foi o que eu me questionei pelos cinco anos que se passaram. No primeiro Halloween que ele apareceu, por poucos segundos, eu novamente me enchi de esperanças falsas. Mas eu havia visto seu corpo no velório, pelo caixão de vidro. Eu vi descerem-no a sete palmos da terra no cemitério local. Eu chorei a morte de Henry. Assumi que era uma pessoa de MUITO mal gosto, me pregando uma peça. No dia seguinte, ele havia desaparecido novamente. Só depois de três Halloweens com a sua “presença”, entendi o que estava acontecendo. Nunca contei a ninguém, afinal. Nem todos eram tão facilmente convencidos por crenças além da explicação humana lógica.

x

– Aaaaaal? Alasca?ALAAAAAAAAAAAAAAAASCA?!
Suas gélidas mãos me seguravam pelos ombros, e chacoalhava o meu corpo, de forma brusca. O olhei atordoada, novamente a visão embaçada pelos olhos aguados. Num suspiro demorado, levei minha mão ao seu rosto. Ele mantinha-se com a mesma idade de quando... Aquilo aconteceu. Henry. Eu não podia deixar que ele se prendesse por mim. Atrapalhar seu descanso eterno parecia um egoísmo tamanho. Com a voz mais controlada, tentando manter a serenidade, lhe disse:

– Henry, olhe para mim. Olhe de verdade para mim. – Seus olhos percorreram-me por completo, mais rachaduras surgiram de seu cenho exageradamente franzido, denunciando sua confusão. Não voltei a falar, até que sua expressão suavizasse, transformando-se numa de entendimento. Ou quase isso. – Al, você cresceu demais.  Nossa, parece um poste!

Não contive um sorriso fraco. Neguei de leve, continuei olhando-o.

– Henry, eu não cresci apenas no tamanho. Eu sei que, aí no fundo, você sabe o que aconteceu.  Não se cegue, Henrs. Chega disso. Por favor.
Pedi em um fio de voz.               
Doía-me a idéia de perdê-lo outra vez, mas me doía mais ainda deixar o espírito de Henry perturbado, confuso, sem nunca se lembrar do que houve. Estava cansada de afastá-lo, o evitei por esses anos que passaram desde a sua primeira aparição em um Halloween, mas já era hora de libertar a ele – e a mim mesma também.
Henry fez menção de coçar sua cabeça, como ele sempre fazia quando não entendia algo. Era um dos seus gestos que eu mais gostava de prestar atenção. Mas seu rosto tornou-se inexpressivo assim que tocou a parte de trás de sua cabeça, e eu não precisei que ele dissesse mais nada para entender o que houve: Ele havia sentido o corte. Aquele ferimento que por noites me impediu de dormir só com a sua mera lembrança. Quase num sussurro, murmurei:

– Eu sinto muito. Eu sinto demais, além do inexplicável. E nunca vou deixar de sentir pelo que houve, Henrs.

Ele assentiu tão minimamente que quase foi imperceptível. Voltou a me olhar nos olhos, e me encarou em silencio por longos minutos. Até que olhou para a Lua, como se ela fosse o seu relógio, e mirando meu rosto novamente disse num tom baixo:

– Eu... Eu tenho que ir. Não sei porque, muito menos para onde. Mas eu tenho que partir. E isso acaba comigo, Al. Eu não queria te deixar sozinha, me desculpe.

– Você não deixou, Heny. Nunca. E eu sei que, nunca vai deixar. Mesmo que eu deixe de vê-lo. – Levantei-me de súbito, e fui de encontro a seu corpo frio, abraçando-o com todas as minhas forças. Eu não queria chorar mais, ele achava bobo o sentimentalismo feminino, Mas não podia conter as lágrimas, que pela primeira vez em anos, não eram de tristeza ou dor. Ele envolveu-me com seus braços fracos, retribuindo o aperto. Próximo ao seu ouvido, sussurrei - Eu te amo, Henrs.  E por isso, quero que vá. Você e... E eu merecemos paz.

Fechei meus olhos aguados, e não sei dizer em que momento não abraçava mais Henry, e sim o meu próprio corpo. Soube que ele se fora, e minha intuição dizia que dessa vez, se fora para sempre.
Mas ela estava errada. Muito errada. Henry estava no canto dos passarinhos que acompanhavam os primeiros raios de Sol iluminando o que antes fora completa escuridão, anunciando que o dia seguinte já chegara, sem que eu sequer notasse. Henry estava no vento que soprava os galhos das grandes árvores, derrubando suas folhas secas em meus cabelos. Henry estava na decoração fantasmagórica (mas tão cedo assim, aparentava mais um amontoado de velhos enfeites simples) que encontrei no caminho de volta para a casa, fora da floresta. Henry estava em tudo. E eu não precisava vê-lo, apenas senti-lo.

Afinal, ele nunca me abandonaria.
Eu não estava sozinha na manhã do dia seguinte ao Halloween.


London, 2050

Por Lady Morning

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