quarta-feira, 26 de outubro de 2016

El Gottic - Desafio Literário

Desafio Literário 2050
Dedicatória: Para P, espero que esta história chegue até onde minhas cartas falharam.

El Gottic


El Gottic O bairro gótico da cidade de Barcelona, conhecido como El Gottic, é um dos mais antigos bairros da cidade, abriga estabelecimentos que vivenciaram as duas grandes guerras trouxas que devastaram parte da Europa e casas nas quais incontáveis famílias viveram suas vidas. Suas ruas estreitas e sinuosas guardam em suas entranhas segredos sombrios, crimes de guerra, magias esquecidas e histórias tenebrosas.

Embora atualmente, o bairro seja um dos pontos turísticos mais famosos de toda a cidade, estrangeiros que ali trafegam nem desconfiam das desventuras que o lugar já viveu. Aqueles mais sensíveis ao ambiente podem até dizer que sentem alguma forma de energia sombria emanar das paredes de pedra, mas mesmo assim, acabam deixando escapar a verdadeira essência daquele lugar.

Os moradores do bairro (especialmente os mais velhos) não deixam sua história morrer. São eles os responsáveis por manter vivo todos os segredos que o bairro guarda. Existe, entretanto, um seleto grupo de anciãos bruxos, residentes daquela localidade, que formam a décima nona geração de uma antiga Ordem bruxa chamada de Els Guardianes, que se dedica exclusivamente em preservar a história mágica do bairro. A Ordem copilou ao longo de sua existência, sete volumes extensos sobre todos os eventos mágicos que lá ocorreram, algumas dessas histórias narram acontecimentos tão bizarros que até mesmo nós, bruxos, duvidamos de sua veracidade.

A história que hoje vou contar é uma delas. Ela se passa no final do século XII, um tempo sombrio para os trouxas e também para os bruxos. Era a festa da colheita, dia 31 de outubro. Naquele dia na praça da Catedral da Sagrada Família fazia-se uma enorme festa onde celebrava-se a farta colheita do ano, que asseguraria que nenhuma pessoa na cidade morreria de fome (pelo menos, não no próximo ano). O que as pessoas não sabiam, era que no subterrâneo sob o festival, um plano horrível era colocado em prática.

Bruxos encapuzados lá se reuniam, tramando o que poderia ser uma revolução para o mundo mágico. O ritual que os bruxos planejavam, entretanto, exigia um preço muito alto: o sacrifício de uma virgem. Sem saber de nada que ocorria nos esgotos, a festa trouxa durou toda a tarde e ao cair da noite, a multidão se dispersava voltando para suas casas.

- O momento é propício. – Disse o bruxo usando uma capa vermelha que o cobria por inteiro.

- Está tudo pronto, podemos começar quando o senhor ordenar. – Respondeu-lhe um dos bruxos de capa roxa. – A virgem já foi escolhida.

- Devemos esperar pelo retorno de Éolo. – Ordenou o mesmo bruxo de capa vermelha – Ele está trazendo a caixa.

Os bruxos reunidos em círculo em volta de uma fogueira ficaram em silêncio por um longo momento, aguardado o retorno de Éolo, até que um dos bruxos de capa verde questionou.

- Senhor Urano, não que eu esteja duvidando, mas estamos mesmo prontos para realizar isso?

O bruxo de capa vermelha virou-se na direção do bruxo que o questionou.

- Quer receber sua capa azul, não é mesmo, Crio? Não é o momento para questionar sua capacidade. Confie.

Mais uma vez o silêncio reinou, sendo quebrado intermináveis minutos depois, pelo som de passos que vinham de um dos lados do corredor escuro que era aquela galeria subterrânea sobre a praça da catedral. Os passos lentos logo revelaram que a espera havia terminado. Éolos, um bruxo de capa vermelha, havia retornado e trazia consigo o que parecia ser um pequeno baú dourado ornamentado com joias preciosas.

- Aqui está. – Disse Éolos aos seus irmãos. – Estamos prontos para começar.

- Muito bem. – Disse Urano voltando seu olhar aos dois bruxos de capa roxa que estavam presente no local. – Febe e Pontos, preparem o ritual.

Os dois bruxos fizeram uma reverência na direção de seu superior e retiraram-se do círculo. Já estava quase totalmente escuro quando deixaram o subterrâneo dirigindo-se para a praça da catedral. A festa já havia terminado a cerca de duas horas. Os bruxos atravessaram a praça até a escadaria que levava à entrada da igreja, subiram degrau por degrau e no topo, desenharam um círculo mágico no chão com o uso de suas varinhas. Febe conjurou uma grande mesa de granito que foi colocada no centro do círculo enquanto Pontos acendia chamas de várias cores nos vértices de uma estrela de sete pontas. Correntes de prata caiam da mesa de granito conforme Febe agitava sua varinha. Quando tudo estava praticamente pronto, os bruxos com capas vermelhas, roxas e verdes atravessaram a praça até o local. Entre eles, flutuava uma mulher desacordada de cabelos negros, usando um suave vestido de seda branco que deixava suas belas curvas transpareceram.

O séquito caminhou até o círculo mágico preparado na entrada da igreja. A mulher foi acorrentada sobre a mesa de granito no centro do círculo, tendo os braços e pernas presos. Éolos aproximou-se da mesa, abaixou-se e aos seus pés colocou o baú que havia trazido consigo. Quando Urano ordenou, todos os bruxos encapuzados colocaram-se em volta do círculo, apontando suas varinhas para o baú dourado e a mão livre sobre o coração.

Pontos ficou atrás da mesa de mármore e em vez de varinha, segura em sua mão uma espada adornada com runas. Os bruxos então começaram a entoar um cântico em uníssono que ecoou por toda a praça. De suas varinhas pendia-se um cordão etéreo branco que ligava todas elas ao baú. No meio do canto, a virgem de vestido branco acordou sem compreender o que acontecia e ao notar que estava acorrentada na mesa pelas mãos e pés, tentou em vão se soltar.

A pobre virgem desesperou-se ao ver o rosto do homem que segurava uma espada com as duas mãos no alto de sua cabeça. Ela gritou. O grito súbito e agudo, espalhou-se pelos quatro cantos da praça, atravessando paredes, adentrando residências, ecoando pelas naves da catedral e preenchendo todo o bairro. Velas foram acesas nas casas, crianças acordaram chorando de medo, homens e mulheres atordoados sem saber o que fazer tiveram seus corações gelados e seus músculos paralisado. Mais repentino que o surgimento do grito foi o seu fim precipitado quando a espada de Pontos lhe atravessou a garganta, separando a cabeça do corpo em um corte perfeito e quase limpo.

O sangue que do corpo jorrou como em uma fonte, sujou o que estavam mais próximos, espalhando-se pela mesa de sacrifício até descer e tocar a caixa e o círculo do ritual. Conforme o sangue percorria o caminho desenhado pelos ritualistas, as chamas multicoloridas foram apagandose uma a uma. Os lampiões que iluminavam a praça também se apagaram quando um forte vento soprou por eles. Por um momento, isso foi tudo o que aconteceu, mas repentinamente o baú ensanguentado agitou-se e o cadeado que o mantinha fechado foi estilhaçado. Sua tampa abriu-se bruscamente. Os bruxos ao redor ainda mantinham suas varinhas ligadas à peça quando a escuridão que preenchia o local não foi suficiente para esconder os horrores que abandonaram o baú.

Figuras disformes, híbridos horrendos de animais, espíritos maldosos e plantas amaldiçoadas foram aos poucos rompendo as ligações entre os bruxos e o baú. O vento soprava mais forte à medida que as criaturas abandonavam o local. Risadas infernais, urros de raiva, arrastar de correntes, vozes desesperadas e assovios arrepiantes ecoavam entre o vento por toda a praça.

Quando os bruxos encapuzados pensavam ter liberado tudo o que estava no baú, eis que surge uma última criatura que fez o vento parar e as luzes voltarem a preencher a praça. A criatura, pequena do tamanho de um camundongo, mas com aspecto de fada, brilhava em tons verdes. Seu rosto de aparência suave olhou para cada um dos bruxos que a havia libertado, sorriu e desapareceu voando pela noite escura.

Os bruxos estavam quase em transi quando o baú fechou-se com um estrondo, fazendo formar o cadeado novamente agora trancando um baú vazio. Sob os capuzes, os bruxos olharam-se. O ritual fora um sucesso.

- Meus irmãos, o ritual foi bem-sucedido. – Bradou Urano. – A Caixa de Pandora fora aberta.

Orgulhosos do feito que acabaram de realizar, os bruxos foram se retirando do local levando consigo apenas o baú dourado. A cabeça da virgem sacrificada ainda exibia o terror nos olhos quando foi encontrada por trouxas que se aventuraram pelo local nas horas seguintes.

- Isso é coisa do demônio. – Afirmavam alguns. – Deveríamos chamar o bispo.

- Vamos avisar o padre. – Disse outro.

O que os trouxas que encontraram a cena não sabiam, era que o pior ainda estava por começar. As entidades liberadas da Caixa de Pandora espalharam-se pela cidade, contaminando alimentos, possuindo animais, manifestando-se como espíritos, possuindo corpos.

Naquela mesma noite, ainda houve relatos de abóboras com rostos maléficos que destruíram dispensas, cavalos com fogo nos olhos quebrando celeiros e charretes, pessoas escalando paredes e contorcendo seus corpos, estranhas marcas apareceram nas paredes das casas, morcegos alvoraçados com olhos vermelhos, aparecimento de aranhas gigantes. Muitas pessoas morreram no que depois as autoridades trouxas julgaram ser uma praga repentina, mas a real causa da morte foi pela insanidade provocada por algumas das entidades liberadas. Na manhã do dia primeiro de novembro, a cidade de Barcelona amanheceu normal sem nenhum sinal dos eventos sobrenaturais que preencheram a noite anterior. As pessoas que morreram durante a noite foram enterradas no cemitério do bairro gótico às pressas pois todos queriam esquecer daquela noite.

- Isso só pode ser bruxaria! – Bradavam os moradores apavorados – Isso é magia das trevas! Pacto com o chifrudo!

Aquela noite do dia 31 de outubro, marcou a cidade de Barcelona e a história espalhou-se por todo o país. A noite das bruxas logo virou o dia das bruxas. A virgem decapitada ganhou o nome de “a mulher sem cabeça”, um fantasma que assombra as escadarias da Catedral da Sagrada Família. O dia primeiro de novembro foi então dedicado aos mortos e a tradição logo espalhou-se para os países vizinhos e depois para praticamente o mundo todo.

Os anos e séculos se passaram, as entidades liberadas da Caixa de Pandora espalharam-se pelo mundo e continuaram a se manifestar nas proximidades do dia das bruxas. Essa história foi registrada pela Ordem Els Guardianes no quarto volume de sua coleção de histórias mágicas que aconteceram no bairro El Gottic de Barcelona, que foi passado de geração em geração na ordem. Há quem diga, que se seu ouvido for suficientemente apurado, ainda é possível ouvir-se os ecos do grito da virgem nas paredes da catedral.

Embora hoje seja comum festejarmos o dia das bruxas, sua verdadeira origem foi marcada pelo sangue, pela morte de inocentes e pela abertura do mundo à seres que nunca deveriam ter sido libertos.

London, 2050

Por Laín Coubert

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