quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A Quarta Rainha - Desafio Literário

Desafio Literário 2050

Dedicatória: Dedico à todos aqueles que parecem encontrar vários dentro de si, em diferentes situações, em diferentes sentimentos. Mas acabam descobrindo que todos, no final, são apenas você. Apenas um coração.

A QUARTA RAINHA


Todas histórias um dia começaram com Era uma vez. Esse conto, no entanto, deveria ser dito que a vez não se foi, a vez continua se passando. É dito que, havia muito tempo, uma mulher havia dilacerado suas irmãs, uma vez sendo quadrigêmeas dividindo um único útero, e absorvido cada uma para dentro de si.
Outras histórias falam sobre a Rainha, da qual foi apenas amaldiçoada. Rogadaà uma maldição, presa à quatro almas impiedosas. Porém, todas as lendas, todas as histórias, todos os mitos, datam um dia: 31 de Outubro.
A data em que os espíritos correm às soltas, as festas tomam força, e o medo corrói as entranhas dos covardes, A Quarta Rainha foi presa. Não em um local físico, mas sim, dentro de si.
A Quarta Rainha não foi amaldiçoada. A Quarta Rainha não comeu as irmãs no útero.
A Quarta Rainha nasceu assim.

Toda magia deve haver uma quebra. No vilarejo em que Maryse, o nome de Outono da Quarta Rainha, residia, com seu enorme castelo – a chamavam de Quarta Rainha por posse. A mulher mais rica de todos os vilarejos, a que mais demandava ordem. A mais poderosa. A mulher receava o Halloween.
Enquanto, a cada estação, a personalidade da mulher mudava, cada vez mais horripilante a cada ano, havia um único dia, entre todos, que a verdade face dela surgia: a mulher bondosa que era, de cabelos castanhos, volumosos e os olhos tão escuros quanto o breu. Durante 24h, a Quarta Rainha não era aquela Rainha. Era apenas Cirilla.
Sim, a Quarta Rainha havia cinco nomes. Um para cada estação, e um único para o Halloween. Ela era uma mulher de poucos amores – e os que tinha, deveria ser para si mesma. Menos Cirilla. Cirilla, que sempre só se libertava uma única vez, tinha um único amor, do qual poderia ver uma única vez ao ano.
Ela chamava-o de Noturno. Havia prometido à si mesma nunca saber o nome dele, pois sabia que as outras Rainhas, se soubessem seu nome, iriam atrás dele quando acordassem dentro de si. Iriam destroça-lo, sem piedade, pois gostavam de diminuir Cirilla. Mostrar que ela não era nada além de uma fraqueza de Halloween.
Mas a meia noite do dia trinta e um de outubro se aproximava. E com ela, Maryse perdia suas forças, e Cirilla podia passar a surgir. A transformação de uma Rainha para outra era tensa: dores, tanto físicas quanto psicológicas. Acontecia sempre à meia noite, na troca das estações, e do Halloween. No caso de Cirilla, ela se despediria de si mesma à meia noite do dia de Todos os Santos. Quando novembro começasse, ela ficaria por mais 364 dias adormecida.
Sentindo falta de seu Noturno, enquanto a dor em seu peito, sempre crescente, só aumentava.

O vigésimo Halloween da Quinta Rainha, a Adormecida, havia começado. Seu único dia de vida, seu único tempo de liberdade. Ela podia assumir seu corpo, mas as outras Rainhas ainda batalhavam por sua mente; todas juntas, contra apenas uma. E por isso, ela nunca conseguia aproveitar seu dia como deveria.
Os gritos tomaram o castelo quando a meia noite chegou, a lua cheia alta no céu. O vilarejo já estava acostumado: espíritos saíam. Alguns diziam que o próprio Regente dos Espíritos e do Halloween passava pelo Vilarejo, cavalgando em seu cavalo esquelético e liberando os espíritos lá do alto.
Tal lenda era tão forte que deveria ser verdade. Quando o Halloween chegasse, a cidade se tornaria cores. Roxo, laranja, verde, azul. Espíritos de diversas cores eram jogados, celebrando. E do castelo, saiam os Cavalgantes. Cavaleiros feitos de pura trevas, libertados pela própria Maryse. Deve ser dito que cada uma das Rainhas tinha uma habilidade especial, e de Maryse, era a necromancia. De Cirilla, a magia branca. As outras três Rainhas eram ocultas até o momento.
Os Cavalgantes assombravam aqueles dos quais tinham medo. Assombravam também Cirilla, que era a mulher com mais medo naquela vila. Temia suas irmãs, e temia por todos aqueles que eram governados por ela. Durante todo dia das bruxas, a Quinta Rainha buscava celebrar seu amor com Noturno.
Aquela noite, no entanto, ela faria outra coisa. Tinha vinte e quatro horas, a partir dali, para cumprir seu feito: quebrar a Quarta Rainha. As quatro mulheres que viviam dentro de si, compartilhavam de seu coração, de seu sangue, de sua pele. Cirilla iria expurgar elas.
Como o faria? Matando uma por uma.

- DOZE HORAS DEPOIS –

Os espíritos sumiam durante o dia. Nenhuma assombração era resistente à luz solar. Um festival, porém, era feito, para celebrar aquela data. Era comum que, na cabeça de todos, a Quarta Rainha se recolhesse em seus aposentos no Halloween, já que ela fazia questão de esconder a existência de Cirilla, a Quinta Rainha.
Apenas Noturno sabia. Quando o sol estivesse em seu ápice, eles se encontrariam. Havia sido assim faziam cinco Halloween’s. O local de encontro era uma pedreira, à beira do Mar Tempestuoso – um local que banhava a costa do vilarejo, não importando se o dia era chuva ou sol, o mar sempre assustava as pessoas com sua fúria e águas agitadas, incansáveis.
Mas naquele dia, ela não seguiu para lá. Cirilla foi direto para o coração do bosque, com uma mochila nas costas, e não para o litoral. Seus passos eram apressados, rápidos, esguios. As Rainhas costumavam ficar desacordadas durante a noite, mas pelo dia, apenas seus sussurros suportáveis podiam ser ouvidos pela garota.
“Indo encontrar seu namorado?”, dizia Mayleen, a Rainha do Verão.
“Ele tem um ótimo gosto!”, dizia Moira, a Rainha do Inverno. É claro que os prazeres e dores que uma sentisse, as outras sentiriam também. Moira era, surpreendentemente, a menos cruel.
“Ele deve ficar com você por piedade. Tantas melhores por aí...”, dizia Mawreen, a Rainha da Primavera.
“Você não deveria nem estar viva, sabia? Dar amor à ele só vai lhe trazer dor, sua burra!”, dizia Maryse. A mais arrebatadora de todas as Rainhas.
Cirilla, a Rainha do Halloween, apenas podia pedir por paz. E nutrir o desejo de mata-las, acabar com elas até que seu coração batesse apenas por si.
E por Noturno.

As demandas para matar a Quarta Rainha eram simples, mas dificultosas ao mesmo tempo: para mata-las, Cirilla, que nada tinha a ver com elas, deveria trazer à si um pedaço de cada uma. Agir como elas, por um único momento.
Os atos eram tão cruéis que ela ponderava à cada segundo. Mas faziam vinte anos que ela ficava naquela tortura. Naquela constante inquietação, a cada ano. Cirilla precisava de paz, além de que sabia que as Rainhas cresciam. Junto delas, o mal também. Se não as parasse, ninguém jamais pararia elas.
Começaria pela primavera. Onde a natureza floresce, os animais cantam.
Os venenos brotam.
Mawreen, a Venenosa. Esse deveria ser o mais rápido dos trajetos que ela tomaria naquele dia. Escondida ainda nos bosques, Cirilla encontrou por lá Visco Sanguíneo. Uma espécie rara, que atingia o coração de quem o ingerisse rapidamente, penetrando-se entre as entranhas do músculo e sendo bombeado junto com o sangue.
O efeito? Coagulava o sangue todo da pessoa em menos de uma hora.
A crueldade de tal ato já deixava a consciência da Quinta Rainha pesada, mas era necessário. Ela partiu para o centro da Vila logo em seguida, carregando em sua bolsa um bom punhado de Visco Sanguíneo. Seus cabelos negros e cheios, tão diferentes dos suntuosos cabelos da Quarta Rainha, e seus olhos negros, também tão diferentes dos outros olhos quando transformados, a disfarçavam. Ninguém a reconhecia enquanto caminhava pelo vilarejo.
Seu local de ataque teria de ser um local cheio. A crueldade só vingaria se fosse realmente cruel. Uma taberna, então. Com sua magia, Cirilla enraizou-se na cozinha do local, e fingindo ser uma funcionária, com muita destreza esmagou o Visco nas bebidas e alimentos que seriam distribuídos. Seu plano era que apenas as dez ou quinze pessoas ali encontradas... Encontrassem seu fim.
Era algo egoísta. Algo sem pensar. Algo imprudente.
Mas ainda assim, Cirilla estava determinada. Não poderia ir para trás. A Quarta Rainha devia morrer.
Os alimentos foram distribuídos logo em seguida. O bar, que era tão agitado, em pouco mais de uma hora, estabeleceu-se em silêncio. Cirilla saiu da cozinha, tirando o avental improvisado do corpo.
Eram vinte, no total.
Cinco crianças. Seis idosos. Nove pais e mães de família. Mortos.
Cirilla gritou de dor, enquanto sentia Mawreen definhar dentro de si.

Os lábios de Noturno eram suaves sobre os dela. Aquele havia sido seu primeiro beijo, e enquanto ele, que era apenas um ano mais velho, parecia ter roubado vários por todo o vilarejo. Eram quentes, e tinham o gosto selvagem que ela tanto buscava. Pressionava os lábios nos dele, deixando-se ser conduzida pelos movimentos abrangentes e calorosos.
As mãos dela se envolveram nos cabelos do rapaz. Noturno pressionava ela contra a madeira mofada da cabana, no meio do bosque. Eram onde tinham se conhecido, dois anos atrás, antes de combinarem de se encontrarem sempre ao meio-dia, na pedreira do Mar Tempestuoso.
– Deixe que eu fique com você para sempre – pedia ele.
– Elas vão acabar com você, Noturno... – sussurrava a garota entre as mordiscadas quentes que o rapaz lhe desferia em seu lábio inferior.
– Sabe que meu nome não é esse.
– E ele não me importa. Eu... Só quero que me deixe aproveitar com você essa noite, okay? Falta pouco para...
– Para eu voltar ao poder? – sussurrou o rapaz. Mas aquela não era sua voz. Quando Cirilla abriu os olhos, viu-se próxima do homem que tanto amava, mas com tênues detalhes: os olhos avermelhados dele, e a voz feminina. – Pronta para me deixar voltar, Cirilla?
A morena gritou, em seu pesadelo, antes que Maryse fizesse algo pior com ela.

Eram quase quatro horas da tarde. O sol iria se pôr às seis. Cirilla acordou. A dor havia sido tanta... Ela se lembrava, de após ter saído da Taverna, chorando, havia se embrenhado novamente no bosque. Até que... Desmaiou, como se um manto negro apenas tivesse envolvido sua cabeça de uma só vez.
Ela se levantou, com suas forças quase repostas. Sua mochila parecia pesar mais, mas nada verdade, era ela que se encontrava mais fraca. Era hora de ir para o inverno. A morte por frio era a necessidade, e ela teria de fazê-lo. A garota parou para se alimentar brevemente, e assim, seguiu para a vila. Crianças. Ela sabia que teria de raptar crianças.
A magia dela a influenciava. Ela não precisava de nenhuma outra informação – era como se fossem apenas... Instintos. A magia dela a guiava para o que ela tanto queria, e a magia dela dizia que para ser má como Moira, deveria matar as crianças.
As crianças mais calorosas do Vilarejo, porém. As que carregavam o sol em suas veias. As que apagariam com o inverno frio.
Na vila em que moravam, havia apenas duas crianças assim. As mais famosas – as guerreiras. Um casal, filho de Solar, o Comandante das Tropas. Mayleen já havia tido um caso com ele uma vez... E desse caso, nasceram os filhos deles. A garota tinha só quinze anos quando seu corpo deu espaço para as crianças.
Filhos da Quarta Rainha, não dela. Cirilla devia sempre se lembrar disso.
A mutação da Quarta Rainha também se manifestou em seus filhos: as crianças, porém, não tinham outras mentes dentro dela. Elas cresciam mais depressa. Foram fadadas a ter uma vida com metade do tempo das outras. Em cinco anos que haviam nascido, tinham a aparência e mentalidade de crianças de treze anos.
Lindas. Louras. Olhos claros, pele maravilhosa. Aquelas crianças poderiam ser guerreiras tão bravas, que poderiam trazer paz para o local. O coração de Cirilla se amargurou com a ideia de mata-las, mas não poderia, como dito, voltar para trás. A Quarta Rainha continuaria buscando por mais poder, cada vez mais, até que, um dia, quando tomasse mais posse do que já havia, só poderia trazer caos.
As crianças estavam na mansão Solar. Moravam sozinhas com o pai. Nos fundos da Mansão, havia um refrigerador mecânico, onde o pai guardava a carne da família – ele, apesar de ser um guerreiro, era meio desequilibrado, também fruto de seu relacionamento com Mayleen, e não saía com frequência. Quando caçava, caçava para o semestre todo. A comida ficava lá, e seria lá que as crianças acabariam por falecer também.
Solar não estava visível quando Cirilla lhe invadiu o local. Seu senso lhe dizia que ele estava escondido em um dos cômodos. Mas as crianças podiam ser vistas facilmente, manejando suas espadas de madeira.
Ao se aproximar mais delas, o corpo de Cirilla esquentou. Ela sentiu calor, e mais calor. Suas têmporas passaram a se encharcar de suor, gotículas escorrendo por seu rosto.
Era Mayleen reagindo.
Cirilla precisava ser forte. O sol iria se por em uma hora, a partir daquele momento. Movendo as mãos, concentrando-se com sua magia, ela desacordou os dois jovens, que brincavam no largo cômodo da Mansão. Os arrastou até os fundos, passando pelo jardim, e assim, pela construção onde ficava o refrigerador. Era como uma galeria, interligada com os estábulos e um depósito. O local era escuro, e tochas presas em compartimentos metálicos iluminavam o local.
O refrigerador ficava nos fundos. Ela o abriu, com um enorme estrondo. O corpo dela ardeu mais em calor. Ela quase sentiu vontade de adentrar dentro do local enquanto jogava as crianças lá dentro, com lágrimas nos olhos. Os acordou, pois essa era parte das normas para acabar com Moira: a morte fria fosse vista e sentida.
Fechou o refrigerador quando as crianças olharam para ela. O estrondo ecoou pelo local enquanto ela chorava mais, sabendo que elas morreriam. A mão de Cirilla alcançou a manivela, e ela a girou. Girou, enquanto podia ouvir o refrigerador funcionando. Podia ouvir o gelo se alastrando lá dentro do local, enquanto as crianças gritavam por socorro e misericórdia.
Imploravam por sua vida, enquanto A Quinta Rainha só queria ter a própria.
– Me desculpe – disse ela. Até que girou a manivela uma ultima vez.
Os gritos de socorro pararam. E os gritos em sua mente denunciaram a morte delas: Mayleen, mais forte do que nunca em uma noite de Halloween, enquanto Moira definhava junto com comMawreen.
“VOCÊ MATOU MEUS FILHOS! SEUS FILHOS! VOCÊ MATOU ELES!”, gritava ela, desesperadamente, dentro da mente de Cirilla. “Eu vou fazê-la pagar...”
E a fez. De repente, Cirilla gritou de dor. Nunca havia sentido algo do tipo. Nem sabia que Mayleen poderia sentir compaixão, mas lá estava ela. Havia perdido o controle do próprio corpo, enquanto podia ouvir palavras proferidas da própria garganta, mesmo que não fosse ela que as dissesse.
– AQUI! – gritou ela. – SOLAR! – Gritava mais, e repetiu, repetiu novamente, e novamente. O homem apareceu...
Era hora de fazer Mayleen queimar nas chamas que tanto fez os pobres arderem.
Ao lado do refrigerador, havia seu combustível, um tipo de óleo inflamável. Solar apareceu, correndo pelo local, sem entender. Cirilla tinha de ser rápida, enquanto lutava para voltar para o controle do próprio corpo. Quando conseguiu, Solar já estava próximo demais...
A Quinta Rainha correu até o tanque de combustível. Puxou uma trava metálica em sua base inferior, deixando que todo o suporte que o segurava, caísse. O óleo se espalhou para todo lado...
Os próximos movimentos parecerem ser câmera lenta. Solar a olhava confuso, mas com uma fúria subentendida no olhar. Cirillacorria, suja de óleo, até uma das tochas.
Jogou a tocha contra o óleo, e as chamas se acenderam como dizem que a força superior deu luz ao mundo.
Antes que fosse feita de fogo, a Quinta Rainha só teve tempo de abrir uma barreira de proteção, impedindo que a explosão que logo se assomou ao local a matasse.
“Feita de fogo, me deixe te fazer queimar”, foi tudo que Cirilla pensou para Mayleen, antes de cair de exaustão.

Não teve sonhos dessa vez. Ela acordou apenas sentindo dor.
Ela estava... Enjaulada. Em cárcere, pôde notar. Seus pulsos eram presos à longas correntes negras, presas ao teto, enquanto se via em uma construção de pedra com grades também negras à três metros à sua frente. Presa.
Haviam capturado ela. É claro que não a reconheceram... Mas devem ter ouvido a explosão. Descoberto que Solar e as crianças estavam mortas. Seus pulsos doíam, e ela pôde ver sua mochila jogada próxima à grade. Tentou se esticar para pegar a mochila, mas seus pulsos presos a continham.
O local era escuro. O que era engraçado, porque ela podia ver a janela à direita e...
Havia anoitecido.
– Não – sussurrou a Rainha, para si mesma. Se estivesse próxima à meia noite... Ela perderia tudo de novo. E acreditava que durante um ano, a tortura seria pior do que nunca, enquanto as outras Rainhas tivessem posse. – Não pode ser...
Cirilla tentou usar magia para quebrar as correntes, mas não deu certo. Eram benzidas à ferro e sal. Resistentes à magia. Ela praguejou baixinho, ininteligível. Droga.
– Deixe de tentar. Os Cavalgantes irão sentir seu medo logo mais, e irão te retirar daqui – anunciou uma voz. Ela conhecia muito bem aquela voz. Maryse. Cirilla olhou para frente, na direção em que ouvia. E lá estava, olhando para a figura bela que Maryse era.
Longos cabelos castanhos, um castanho claro, como folhas secas do outono. Os olhos, eram os mais belos das Rainhas, Cirilla achava. Olhos de um verde morto, fosco. A pele, era pálida; a única coisa que elas compartilhavam, era a pele pálida, extremamente pálida.
– Como eu posso estar te vendo? – indagou Cirilla. Aquilo não deveria ser nem perto do possível. – Não é meia-noite ainda. Não sinto as dores.
– Isso aqui, é claro, é uma ilusão da sua cabeça. – Maryse sorriu, balançando a cabeça em uma negativa. – Você é tola, Cirilla. E até inocente. Acha mesmo que poderia ser uma de nós, em pelo menos, um ato? Não somos tão imprudentes, garota. – A mulher se ergueu; desde que apareceu, estivera sentada, com as costas para a grade. – Nós não mataríamos sem planejamento. Nós não nos entregaríamos puramente à magia. Nós pensaríamos. A Quarta Rainha, nós, somos inteligentes. Não burras. E agora, que você agiu assim, enfraquecendo Mayleen, Moira eMawreen, eu fico mais forte. Porque sou a única que sobrou, entende? Se elas estivessem mortas, eu seria tão forte que eu não seria apenas uma ilusão. Eu poderia tomar seu corpo, entende?
– Então me ajude a mata-las. Você sabe que só preciso de um ritual para mata-las por completo, agora que estão fracas...
Maryse gargalhou. Céus, foi uma risada cruel. Os ossos de Cirilla pareceram congelar, assim como arrepios nada aconchegantes lhe subiram a coluna. Ouvir aquele som era agoniante. Mesmo assim, a garota teve de permanecer firme, olhando nos olhos de Maryse, não deixando-os vacilarem.
– Sua tola! – disse ela, rindo mais. – Eu não sou a Quarta Rainha sozinha. Sem Marween, Moira e Mayleen, não existe quarta rainha. Eu posso ficar mais forte, mas únicas, nós somos o poder.
– Eu faço parte desse poder! Vocês vão acabar arruinando tudo com essa ambição. Ter posse da Vila vai apenas mata-los.
– Poder? – perguntou a mulher, negando com a cabeça em um gesto. – Cirilla, você não é o poder. Você sempre foi nossa fraqueza. Sempre foi nossa vergonha. E agora, veja onde chegou. Cirilla... Você mesma destruiu a Vila.
– O quê? Não. Eu fiz... O que era necessário para acabar com vocês. Não me importa se eu acabarei junto.
– Os venenos que usou, eles vão ser distribuídos para o festival. Todos irão se alimentar, e se não todos, a maior parte. Sabe como amamos uma festa. Não perdem a oportunidade de se embebedar, afinal, são puros porcos. Assim como você. Uma inútil. – Uma risada ecoou novamente da garganta de Maryse. –Você fica presa por tanto tempo que não acaba acompanhando todos os ocorridos. Solar passou à ter o refrigerador da Vila toda. Todas as carnes que gastaram tempos caçando, para que quando o outono viesse, não sofressem com escassez. E você o explodiu. Temos guerreiros, bruxos. Não sobreviverão apenas de plantas. Precisarão de carne pra fortalecer, Cirilla...
– E eu arruinei tudo.
Maryse apenas sorriu, inclinando-se sobre a garota. Uma mão tocou seu rosto. O toque de Maryse era morno, mas áspero. Também lhe trouxe agonias.
– Bem-vinda ao inferno que é o remorso, Cirilla. E que seja castigada nele o máximo que puder.
A Quinta Rainha fechou os olhos, balançando a cabeça. Uma risada ecoou pelo local, violenta, até que foi interrompida por outros sons.
Gritos. O som estridente de metal contra metal. Gemidos de dor. Cirilla abriu os olhos, olhando para fora da cela onde estava. Vindo do corredor escuro, uma figura vinha. Ela torcia para que não fosse um Cavalgante...
Mas quando a luz banhou o rosto da figura, ela gemeu em surpresa, o ar escapando de seus pulmões enquanto ela sorria.
Noturno.
O corpo dele, forte, era coberto por uma espécie de armadura. Era esguio, mas os braços do rapaz eram soltos, morenos, mostrando as cicatrizes de batalha. Noturno era um guerreiro, um dos mais habilidosos. Ele tinha duas espadas embainhadas, uma em cada lado do quadril. Uma foice nas costas. Cirilla se perguntava como ele se movia com tanta facilidade, considerando o peso.
Os olhos dele, de um azul tão claro quanto o céu, contrastavam com o que ela atribuiu o nome dele: os cabelos. Cabelos negros, caindo sobre o rosto em suaves cachos. Nunca viu cabelos negros de tanta intensidade, rebeldes e selvagens. Noturno arrancou uma das espadas da bainha, e violentou as grades de uma só vez com a lâmina, abrindo-a com um baque.
– Noturno... – sussurrou ela, enquanto via o amado lhe arrancar as algemas negras. Ela pode sentir sua magia voltar para si, aos poucos.
– Cirilla – sussurrou ele de volta, segurando o queixo dela, e logo então, a beijando, uma única vez. – Precisamos sair daqui. Falta apenas uma hora para a meia noite. Eu te procurei o dia todo... Não pude acreditar quando soube que uma garota, com suas características, havia sido presa. Não tive alternativa se não vir ver... E colocaram um quadro lá fora, te expondo como bruxa. Precisamos sair, logo!
Ele a tomou nos braços. Ela pegou a mochila, esticando-se e finalmente alcançando-a.
– Leve-me para a pedreira – foi tudo que ela disse. Lá, faria o ritual. Lá, expulsaria as irmãs. Lá, faria Maryse saber o que era arder no inferno.

Eram onze e quinze quando chegaram na pedreira. O Mar Tempestuoso estava violento, claramente furioso, e ela podia ouvir as ondas quebrando contra a pedreira, a porção elevada de terra, talvez trinta ou quarenta metros acima do mar.
Cirilla passou a preparar tudo. Não iria enfraquecer Maryse, como fez com as outras, pelo simples motivo de que... Com o outono, a morte seca vinha. As folhas caíam, os animais ficavam sem alimentos, e tudo desandava.
Para que a crueldade de Maryse despontasse em Cirilla, ela teria de matar Noturno. Sua magia lhe disse isso. E ela se negava a fazê-lo.
Preparou o ritual. Pegou uma adaga em sua mochila, e cortou a própria mão. Contou para Noturno seu plano, apesar de omitir toda a história – de que os assassinatos, e até a destruição da própria Vila, seria por conta dela.
Deixou o sangue pingar no local. Acendeu chamas com pequenas velas que tinha na mochila. A pedreira era naturalmente enfeitada pela natureza: quatro enormes pedras, como lacunas. Cirilla se lembrava de ter... Tido momentos íntimos com Noturno ali.
O amor de sua vida. Ela prometeu à si mesma que teria mais momentos ali.
– Noturno, você deverá ir. Eu... Posso fazer isso sozinha.
– Eu não vou te abandonar, Cirilla.
Não iria discutir com ele. Ela seguiu o ritual, do qual sua descrição seria desnecessária, pelo simples fato de que magia é magia. Não se discute magia.
O ritual também era doloroso. Quando a lua se aproximava, cada vez mais, de seu ápice, a dor a tomava mais. A transformação se aproximava...
Cirilla gritou. De repente, quatro vultos saíram de dentro dela. Vultos negros, com apenas cabelos sendo perceptíveis. Maryse, a mais forte, com os cabelos castanhos. Moira, com seus cabelos platinados. Mayleen, com seus cabelos dourados. E Mawreen, com seus cabelos ruivos.
Cada uma ficou presa à uma das pedras. Ou era pra ter ficado; de repente, o vulto de Maryse, que não se conteve às magias da Quinta Rainha, voou até Noturno, envolvendo-o em seus braços esfumaçados.
– Se continuar, eu o matarei. Sabe que tenho força para isso. – A voz dela era estridente, aterrorizante. Pareciam gritos, vários gritos em uníssono em uma única voz.
– Ei! Não! Não, não, não! Não o mate... Eu imploro – pediu Cirilla. Mais uma vítima, e sendo aquele do qual ela amava, ainda por cima. Ela não aguentaria. Mas também não se renderia. – Se o matar, eu me mato. Me ouviu?
Cirilla puxou a faca em que havia cortado a própria mão, colocando-a contra o próprio peito.
– Duvido que faça isso – disse Maryse, com desdém.
Duvidava, hum? Cirilla fechou os olhos, tomando coragem de ferir-se. Se aquele corpo morresse, todas morreriam também. Talvez ela devesse ter feito isso antes... Antes de arruinar tudo.
– Cirilla! – gritou Noturno. – Não!
Mas já não era mais tempo. Em um momento decisivo, ela desceu a faca para a barriga. Afinal, poderia continuar viva a partir de então, dessa facada. Ergueu a lâmina, e logo em seguida a enterrou na própria pele.
A dor foi lancinante. A pior de sua vida. Mas nada se comparava ao prazer de ouvir Maryse gritar novamente, soltando Noturno, e dissipando-se. Ela havia morrido. Uma após a outra. Cirilla estava prestes a no chão, sangrando. Noturno correu até ela, tomando-a nos braços.
– Meu amor... Vamos cuidar dos ferimentos, okay? Por favor, seja forte. Por favor.
“Achou que nos mataria, hum? A meia noite está próxima. Se seu corpo morrer... A eliminada é você. O ferimento irá sumir quando Maryse voltar”, foi o que ela ouviu em sua cabeça. A Quarta Rainha dizendo.
– NÃO! – gritou Cirilla. Com o que restava de suas forças, ela se jogou. Impulsionou-se para longe dos braços de Noturno.
A ultima visão que ela teve foi dos olhos claros contra a escuridão que era os cabelos de seu amado.
Sentiria falta deles, enquanto queimasse com as suas irmãs.
O corpo da Quinta Rainha foi levado de encontro ao Mar que nunca tinha sua fúria acabada.
A mente da Quarta Rainha, a luz cheia de más intenções, por fim, se apagou.









Um ano depois

O castelo se abriu. O Halloween havia chegado. O homem de cabelos negros se aproximava, entrando no castelo. Em cinco minutos, o Halloween chegaria, a lua, em seu ápice, liberaria os espíritos e os festivais.
Muito havia se recomposto em um ano. E apenas uma testemunha sabia de tudo que aconteceu.
Essa testemunha, porem, virou quatro.
Quando a lua tocou o céu, o laranja, o roxo, o verde e o azul vibraram, tomando tudo de risos. Não haviam mais cavalgantes, não haviam mais trevas. Ou isso era o que pensavam. Nenhum acidente, mais nenhum assassinato. Mas, em um local profundo, enfiado em um dos cômodos do castelo, Noturno ria. Ah, como ele ria. A transformação não lhe doía, lhe dava prazer. Os cabelos negros como a noite tomaram um tom dourado. Os olhos dele, se tornaram prateados, diferentes do azul paradisíaco que normalmente tinha.
O Quarto Rei estava ali para clamar pelo sangue derramado de sua amada.


London, 2050

 Por Gray Crow

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